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O Chamado Selvagem (Jack London, 1903)



Sua vida não deve ser muito difícil. Nesse exato momento você deve estar sentado em uma boa poltrona, ou deitado em sua cama confortável. Pode estar desfrutando dos benefícios do ócio que perdura, ou aproveitando os poucos minutos de um breve intervalo em sua vida laboriosa. Estando em sua casa, você tem conforto inigualável, e suas necessidades podem ser supridas facilmente. Está com fome? Fácil, só precisa se levantar, dirigir-se à cozinha e pegar algo para comer. E isso não exige esforço imensurável, concorda? Você está acostumado a viver assim, e talvez até goste de sua vida. Tem o que precisa ao alcance de suas mãos, tem a comodidade de um lar, e pode se proteger do frio, se precisar.

Mas o que seria de você se esse cenário mudasse? Você estaria pronto para lutar por sua sobrevivência em um ambiente inóspito? Aceitaria o fato de ter de mudar todos os seus hábitos para se adaptar de acordo com suas necessidades, e não suas vontades? Talvez sim, talvez não... Você quer passar por esse teste? Não sei quanto a você, mas Buck não queria. Ele queria prolongar sua vida tranquila, de soberania e comodidade, sem ter de passar por testes impetuosos de sobrevivência. Mas sua situação muda quando Buck ouve um chamado. Pensando bem, não foi um chamado. Foi um apelo. E esse apelo não veio de um lugar comum. Esse apelo veio da selva.

Mas o que Buck tinha de tão especial para receber tal apelo? Por que ele e não você? Por que ele teve a chance de “conhecer a si mesmo”? Fora obra do acaso? Pode ter sido obra do destino... Ou, uma fatalidade.

Buck era nobre. Vivia com Juiz Miller, em uma bela fazenda no Vale Santa Clara. Podia desfrutar de uma primazia que nenhum de seus companheiros conquistara. Tudo graças a seu sangue: seu pai fora um grande amigo do juiz por muitos anos, e sua mãe era escocesa. Após a morte de ambos, Juiz Miller assumiu a responsabilidade de cuidar de Buck, e os anos de convivência e cuidado resultaram em uma amizade digna e sólida. Buck galgou com louvor seu espaço na casa do juiz, tornando-se soberano entre todos. Mas possuía uma fraqueza da qual nunca poderia fugir: não sabia ler. E tal incapacidade dificulta a vida de qualquer um, concorda? Principalmente quando estamos falando de um cão.

Sim, Buck era um cão, filho de um são-bernardo e uma pastora escocesa. Porém, sua nobreza tornou-se seu infortúnio, e isso ele não pôde prever, pois “não lia jornais”. E o que os jornais diziam? Além das casualidades do ano de 1897, os jornais traziam a notícia de que ouro havia sido descoberto em Klondike, região localizada ao noroeste do Canadá, fronteira com o Alasca, e a corrida pelo metal aumentara a busca por cães capazes de suportar o frio do inferno gelado. Puxar os trenós sobre o gelo instável era tarefa árdua, que exigia muito dos músculos e das habilidades dos cães. Buck tinha isso de sobra. Seu porte avantajado teria grande valor para os mineiros e mensageiros daquela terra. Manuel, um dos jardineiros do Juiz Miller, sabia disso e... Bem, você já deve imaginar o que aconteceu.

Chegar a um lugar novo contra sua vontade nunca é fácil. Lembre-se da primeira vez que você foi à escola, ou quando foi transferido para uma nova escola; ou uma nova cidade. Primeiro, vem a sensação do novo, e com isso aquela insegurança, incerteza se será capaz de se adaptar ao novo ambiente. Novo ambiente, nova sociedade, novas “leis”.

Disciplina. Disciplina sempre é exigida, e Buck tinha de ser disciplinado. Ele era um burguês, e burguesia não tinha espaço nesse novo contexto. Ele não teria as mesmas regalias, e não receberia os mesmos cuidados que recebera em seu antigo reino. A lei agora era diferente: era a lei do porrete.

Como você deve imaginar, meu caro, Buck sofreu muito para se adaptar. E além de toda a dor física, existia aquela dor interna, que é muito mais difícil de lidar: a dor do orgulho ferido. Ter de dividir sua comida com outros cães, sem poder ter nada em abundância, era demasiado doloroso. Egoísmo? Avareza? Antes de julgar as atitudes de Buck, tente se lembrar da primeira vez que você dividiu seu lanche com um amigo, ou um brinquedo. Caso você tenha um irmão ou irmã, como era ter de dividir o mesmo quarto? Confesse. Existe uma “disputa por território”, certo? Claro que esse sentimento pode esvaecer com o tempo... Esvaeceu?

Em seu antigo reino, Buck era a lei. Era o mais forte, “produzia” mais, o que lhe dava direitos e privilégios. Agora, sua realidade era outra. Trabalhar mais não era garantia de mais comida no final do dia. O alimento seria dividido, e o cão que não usasse toda sua capacidade durante a jornada diária, seria tratado da mesma maneira. Esse era o regime da matilha, e essa transição não foi nada fácil para Buck. Sair do conforto do capitalismo para o labor e igualdade do socialismo era penoso. O “estado” não permitiria a segregação com a qual ele estava acostumado. Qualquer indivíduo (ou sociedade) que tenha passado por tal transição, teve de sofrer. E claro, nem todos conseguem. Será que nosso cão conseguiu? Será que ele deixou seu orgulho de lado, e não mais buscou um espaço de destaque no grupo?

Como você agiria? Provavelmente, mostraria suas habilidades, buscando incansavelmente mostrar que você é uma boa escolha, que você é um merecedor, mesmo em um regime de igualdade. O que se pode conquistar com isso? Pense em tudo o que você já conquistou, e talvez você encontre a resposta.



Mas e quanto ao “estado”? É preciso falar dele também, não é? Buck não era um voluntário, e não agia seguindo suas vontades. Ele trabalhava para alguém, e aprendeu que aquele que lhe dava ordens tinha influência direta em seu trabalho e na produção de toda a matilha. Liderança, meu caro leitor. Um líder faz toda a diferença. São muitas variáveis: existe o líder disciplinador, que é temido e respeitado, e busca resultados através de regras e suas aplicações. Existe o líder displicente, que é tratado e trata seus subordinados com desdém, e espera resultados positivos pelo simples fato de “ser o líder”. Existe o líder que conquista através do afeto, do carinho, buscando ganhar a confiança de seus liderados ao mostrar que se importa com os mesmos. São muitas as variações. Seria possível definir uma fórmula para o líder ideal?

Nesse momento, interrompa a leitura desse texto e leia O Príncipe, de Nicolau Maquiavel.

Leu? Ótimo. Não leu? Eu entendo. É muito pouco tempo para ler, e você quer logo saber por que eu citei tal obra. Talvez você não conheça O Príncipe. Ou melhor, você conhece o livro mais do que você imagina. A obra é mais conhecida pelo questionamento que o autor levanta acerca de um líder: “É melhor ser amado ou temido?” Não é muito fácil responder tal pergunta, concorda? Há muito a se considerar. Maquiavel deu sua resposta, e como era de se esperar, gerou uma polêmica que perdura através dos séculos.

O líder também seria responsável pelo sucesso ou fracasso de Buck: o quão leal ele seria, o quão livre ele seria, o quão disposto ele estaria a realizar seu trabalho. Sendo assim, o que seria melhor: uma experiência com apenas um dos modelos, ou a variedade seria vital para sua construção? Como descobrir como isso se desenrola na história? A resposta é bem simples, não acha?

Diga-me, ainda falta alguma coisa? Sim, falta o tal do apelo, aquele que mencionei no início do texto. E o que é esse apelo? O que é esse chamado? É algo que nós chamamos de autoconhecimento. Pode parecer cliché, mas momentos de tensão permitem que você descubra quem você realmente é. Ao ser tirado de sua zona de conforto, Buck teve a chance de se encontrar. Mas saber não é tudo, ou você se esqueceu do arbítrio? Ao saber quem você é realmente, você terá a chance de escolher: seguir esse caminho que surge diante de seus olhos, ou assegurar que o oblívio permaneça. E quem é Buck? Descubra com a leitura.

O Apelo da Selva foi escrito por Jack London em 1903. London passou boa parte de sua vida buscando seguir os princípios do socialismo, e peregrinou nos Estados Unidos na tentativa de disseminar a teoria. Sua carreira, apesar de promissora, foi breve. London cometeu suicídio em 1916, quando atingira quarenta anos de idade. Mas suas crenças e seus princípios permaneceram no legado deixado por suas histórias. Não lutou para prolongar sua vida, pois queria viver intensamente. E teve em Buck uma excelente fonte de ensinamento acerca de lealdade, civilidade e liberdade.

“Os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que lhes dedica amor do que a quem lhes inspira temor.”

- Nicolau Maquiavel

Sinopse
Jack London (1876-1916), que tentou a vida no garimpo em 1897, narra neste romance as aventuras de Buck, o privilegiado cão doméstico de uma família californiana. Em meio à febre do ouro, Buck é roubado de seu ambiente e contrabandeado para o Alasca. O leitor é levado a reavaliar seus princípios de civilidade, lealdade e liberdade.


Cheers

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