A série em quadrinhos The Walking Dead acaba de completar uma década de existência, e para coroar essa significativa conquista, a Skybound, que é hoje o lar de Robert Kirkman, em parceria com a Hyundai, Future US e Initiative, fizeram esse belo documentário detalhando a saga de um dos quadrinhos mais aclamados de todos os tempos. Entrevistas com o próprio criador e demais artistas envolvidos nesse projeto vencedor de vários prêmios, incluindo o Eisner de Melhor Série em 2010.
Mas o que torna essa HQ tão marcante? Bem, é claro que você
vai chegar a diversas conclusões ao assistir o documentário The Walking Dead: A Decade of Dead, mas
nós podemos conversar um pouco antes disso, não podemos?
Como você aprendeu com o texto do nosso mestre Victor, o que
hoje nós vemos em The Walking Dead é reflexo da idealização do cineasta George
Romero. Se nesse momento você estiver à procura de mais informações sobre ele
na internet, cuidado com alguns textos por aí, pois dizer que ele é um mero “criador
de filmes zumbis” está muito aquém de sua contribuição cultural.
Quando Romero lançou o filme Night of the Living Dead, em
1968, ele apresentou ao mundo uma nova concepção de mortos-vivos, e o subgênero
chamado Apocalipse Zumbi. Subgênero porque está dentro da literatura apocalíptica,
onde a “praga” que massivamente ataca a humanidade não poderia ter sido
prevista.
A maneira como os acontecimentos se desenrolam a partir do
surgimento dos zumbis segue algumas etapas. O filme Guerra Mundial Z, lançado em junho desse ano e dirigido por Marc
Foster, é uma ótima ilustração dos eventos que se seguem. Se você assistiu, sabe
qual é o primeiro estágio: pânico. Pânico geral se instala desenfreadamente e
as pessoas, cada uma à sua maneira, imploram por salvação. Algumas rezam à
Autoridade Divina, mas convenhamos que as ações que seguem vêm de outra
autoridade: os nerds o governo. A resposta do governo e militares ao
surgimento da “novidade” é o que marca a segunda etapa, e o resultado dessa ação
imediata possibilita o surgimento de duas terceiras etapas.
Se a ameaça for contida, fim de papo. É claro que será
necessário algum tempo para reconstruir o que foi destruído, para que as
pessoas se restabeleçam socialmente e se curem do trauma psicológico (ou
físico) vindo da repentina aparição de uma praga de proporções épicas. Mas, e
se a ameaça não for contida? E se a resposta do governo não for o suficiente
para impedir que ela se alastre? Se isso acontecer, nós temos o outro lado da
moeda, o universo que é bem mais legal. E é aí que entra a genialidade de
Robert Kirkman.
Se você acompanha a série desde o início sabe que Kirkman
decidiu pular as duas primeiras etapas. Elas são óbvias e, para o propósito de
The Walking Dead, desnecessárias. O que diferencia a séria de outras obras é
justamente o foco dos acontecimentos. Aqui não há a necessidade de se saber de
onde e como os zumbis surgiram, e esse elemento pode ser considerado um divisor
de águas. Se você é um daqueles que precisa saber dessas informações
imediatamente, nem comece a ler a série. Alugue os filmes da franquia Resident
Evil e mor... "Seja feliz!"
The Walking Dead está aí há dez anos por conta desse
aspecto. E, sinceramente, espero que permaneça assim. O que aconteceria se na
edição de número 120 da HQ Robert Kirkman revelasse de onde o vírus surgiu? A
série chegaria ao fim em pouco tempo. Por quê? Ora, porque é o caminho natural
dos acontecimentos. Descobrir a origem de um problema é o primeiro passo para
resolvê-lo. Mas, felizmente, esse não é o foco do criador.
O que Robert Kirkman quer nos mostrar, seguindo os passos de
Romero, é justamente a resposta da humanidade ao ocorrido, trabalhando os questionamentos
que enfrentamos quando nos deparamos com o caos. Como nós lidaríamos com toda a
situação se as ações iniciais das autoridades falhassem? Como as pessoas se comportariam umas
com as outras? Será que nesse universo hipotético ainda há lugar para íntegros,
ou o que conhecemos como integridade dá lugar ao nosso distorcido instinto de
sobrevivência? Nesse mundo, onde a grande massa está abalada psicologicamente e
um simples estalar de dedos pode quebrar todos os códigos morais, a democracia
é a melhor escolha?
Se “a ordem vem do caos”, The Walking Dead nos mostra que
ela demora, e muito, a ser estabelecida. Se um dia a série terminar,
provavelmente nós não saberemos se a ordem foi restabelecida ou não. Não
acredito que, no fim das contas, teremos explicações sobre a futura erradicação
da praga. Por quê? Porque The Walkind Dead não é sobre zumbis. The Walking Dead
é sobre pessoas.
E qual é o papel da série de TV nisso tudo? Acredito que
seja mais um indicador do poder da HQ. Nem sempre as produtoras estão dispostas
a apostar em uma adaptação para o cinema ou televisão, com receio de dar um
tiro no pé. Mas a AMC acertou em cheio, e os picos de audiência são cada vez
maiores com o lançamento de novos episódios. Não vou falar sobre as diferenças
entre os roteiros e personagens, até porque essa comparação é um pouco injusta. Apesar de dependerem bastante da imagem, quadrinhos e televisão
são mídias muito diferentes e mudanças acabam sendo necessárias. O público é
diferente: o que funciona para os leitores pode não funcionar para os telespectadores.
Mas uma coisa eu posso afirmar: se você conheceu The Walking Dead através da
séria da AMC, dê uma chance à HQ. Garanto que você irá se surpreender ainda mais.
Robert Kirkman pegou o que ele achava de mais interessante
no universo criado por George Romero e criou uma obra de arte. Será que ele
imaginava que um dia alcançaria tanto sucesso? É muito legal ver que as
resposta dos leitores foi bastante positiva, e todo o apoio dos fãs ao trabalho
de Kirkman contribui para a longevidade da série. Isso fica bem claro, tanto
pelas palavras do próprio criador, como pela notável presença dos fãs em
eventos. E se você perguntar ao Sr. Kirkman o que ele espera daqui em diante,
sua resposta será simples e genuína: “Que venham os próximos dez anos!”